A educação como sonho e libertação
“A verdadeira liberdade de um povo é poder contar a sua própria história”
O título deste texto é uma homenagem a Aparecida Mendes, quilombola de Conceição das Crioulas, Mestra em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais pela Universidade de Brasília (UNB) e ex-presidenta da Associação Quilombola de Conceição das Crioulas (AQCC). Cida, como é chamada por todos, foi uma das educadoras populares no projeto “Franciscas, Marias e Dandaras: donas de seus destinos”, que sempre reforçou a importância de não apenas resgatar, mas de honrar e de festejar as histórias do seu povo.
Folheando a sua dissertação de mestrado [1], encontramos, ainda no capítulo 1, o subtítulo “um caminho tardio, mas perene: a educação como sonho e libertação”. Ali, ela narra a sua infância no quilombo de Conceição das Crioulas e sua relação com a Escola Municipal José Néu de Carvalho, que foi a única da região por anos . Ao ler o material, tivemos a certeza de que o fio condutor para falar sobre educação quilombola, território e articulação política só poderia ser ela.
Cida terminou a 4ª série do ensino fundamental em 1983, com 12 anos, grau mais alto da educação formal que a maioria da população da comunidade poderia acessar naquela época. Para ir além, era necessário migrar para Salgueiro (PE), uma mudança difícil por dois motivos: 1) financeiro. A maior parte das famílias não tinham condições de custear moradia, alimentação e transporte. 2) racismo. Estudar em Salgueiro significava sair da “segurança” que o quilombo proporcionava para encarar sozinha, desde muito cedo, a carga pesada da discriminação racial.
“Percebi anos depois que não se tratava de um problema pontual, mas de uma intencionalidade estrutural que nos mantinha em uma condição de sub-cidadania, já que a mesma sociedade que diz que “para ser alguém na vida” tem que ser detentor dos conhecimentos educacionais formais, cria um conjunto de dificuldades que inviabilizam o acesso a esse direito.” (Aparecida Mendes, 2019, p. 32)
Foi a partir de 1995, mais de uma década depois da interrupção de um sonho, que Cida retornou à sala de aula para finalizar os seus estudos, tendo a educação quilombola como base para traçar o seu caminho de libertação. Uma história que abordaremos a seguir, de forma resumida.
Do sonho a libertação
As lideranças de Conceição das Crioulas compreendem que além da ausência de um prédio escolar, o problema também era formado pelo tipo de educação oferecida no quilombo. Assim, ainda na década de 1980, a comunidade assume como prioridade a luta pela escola de 5ª a 8ª série, a partir de um método ativo, dialogal, crítico e participante (Márcia Jucilene do Nascimento, 2017, p. 52). Em 1995, a Escola Municipal Professor José Mendes [2] é inaugurada, trazendo a possibilidade para a juventude de começar e terminar os estudos sem interrupção, enquanto para os moradores e moradoras mais velhas, como era o caso de Cida, a esperança de restabelecer um sonho interrompido.
Se antes a educação formal era utilizada como instrumento de opressão, o reconhecimento e valorização dos saberes locais, capitaneados por pessoas experientes da comunidade que transcendiam os muros escolares alterou essa realidade, fazendo com que a educação se tornasse um instrumento de luta pela liberdade e qualidade de vida para a população quilombola.
Um chamado coletivo por uma educação antirracista
A lei 10.639 sancionada em 2003 [3] tornou obrigatório o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nos estabelecimentos públicos e privados de ensino fundamental e médio, representando uma importante conquista do movimento negro. Mesmo com os desafios encontrados na sua execução, a legislação abriu caminhos importantes para o debate e a construção de práticas em prol de uma educação formal democrática e antirracista.
No estado de Pernambuco, por exemplo, foi criada a Carta de Princípios da Educação Escolar Quilombola de Pernambuco. Um trabalho em conjunto da Comissão Estadual de Comunidades Quilombolas e o Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF)que consultou diversas comunidades durante os anos de 2007 e 2008, a fim de discutir as escolas que tinham e as que desejavam. No documento que formaliza este trabalho, o CCLF fala sobre a importância de entender que “nas comunidades tradicionais a escola não é o único espaço de realizar aprendizagens”, mas reforça a necessidade de apropriação dos espaços escolares para que eles sirvam aos interesses das comunidades em que estão inseridos.
Conhecer e acompanhar a história do Movimento Negro pela educação, é compreender que não há um modelo pronto, mas que determinados recursos estão presentes em praticamente todas as realidades, seja ela em territórios rurais como Conceição das Crioulas, seja nos grandes centros urbanos. Seja lendo a dissertação de Aparecida Mendes, Márcia Nascimento, Givânia Silva, seja lendo os livros de bell hooks, a principal pretensão consiste na construção de um espaço coletivo e verdadeiramente respeitoso, capaz de transformar a sala de aula em um ambiente fortalecedor para a autoestima de jovens e crianças negras [4].
Cida, Lourdinha, Valdeci, Márcia, Givânia, Fabiana e muitas outras mulheres de Conceição das Crioulas nos ensinam a vitalidade de saber de onde viemos e, principalmente, como o domínio da própria história, cultura e valores ainda é um privilégio da branquitude, alcançado com o apagamento da história negra, em que a educação formal foi por séculos, cúmplice.
E aqui, por fim, mais uma pitada das doses de sabedoria de Conceição.
Eu acredito que a história não para e a cada momento ela vai exigindo de nós mesmo estar sempre aprendendo. […] E depois dizer que tudo isso também me satisfaz, porque é fruto de toda essa luta conjunta da comunidade. Então, é verdade que nós vamos tá sempre desafiando. Desafiando os currículos, desafiando as dificuldades que são imensas, né. Mas também propondo sempre que as pessoas precisam estar em sala de aula pra está sempre aprendendo, precisa tá sempre buscando. E claro, questionando e denunciando qualquer forma de governo ou de interrupção do direito das pessoas de ter educação. E aí queria lembrar uma frase que eu sempre penso: não pensar a educação de uma forma exclusiva, mas a gente poder propor uma educação onde inclua as pessoas, onde valorize as pessoas, onde as pessoas tracem seu próprio destino. Não penso que uma educação ela hoje seja pra dá um troco ao que fizeram com o povo negro ao longo do seu tempo, mas seja sim para dar conta de dizer tem tanta riqueza que foi massacrada, oprimida pelo poder dominante desse país. Então me satisfaz aqui essa sementinha de experiência de liberdade. (João Alfredo, liderança quilombola de Conceição das Crioulas, em agosto de 2016)