Estudo de Caso
Ampliando projetos de vida, estudo e carreira de meninas negras do Ensino Fundamental
Pesquisa realizada pela organização Tomara! Educação e Cultura, em março de 2023
O projeto Meninas Que Vão Além teve impactos significativos na vida das meninas negras participantes. A iniciativa contribuiu para a ampliação das perspectivas de futuro dessas adolescentes, através da revisão crítica do passado e do presente, e da construção de um ambiente seguro e acolhedor, onde elas puderam se expressar livremente e aprender com outras meninas e mulheres.
Dessa forma, o projeto teve um efeito positivo na autoestima das meninas e no empoderamento delas diante do contexto social em que vivem. Isso se deve, em grande parte, a conexão acolhedora entre as mulheres negras adultas que participaram do projeto e as adolescentes, que puderam se espelhar em exemplos de mulheres negras bem-sucedidas e imaginar um futuro para si mesmas que transcende os limites impostos por estigmas racistas e sexistas, conforme revela o relato de estudante participante:
A fim de melhor compreender os impactos, o programa foi analisado a partir de 6 dimensões:
“Antes, a família perfeita para mim seria só se a mulher estivesse com o homem do lado, que ela podia conseguir alguma coisa na vida. Só que agora, vendo a história de mulheres que podem ir para o alto sem homem do lado, eu penso de outra forma. O programa provocou mudanças porque aqui a gente fala sobre a nossa cor, mas também sobre a independência das mulheres, então acho que eu não preciso de um homem para ser independente, ou que eu vou alcançar alguma coisa porque eu tenho um macho do lado… Eu posso fazer isso sozinha porque eu sou mulher, então eu acho que isso mudou muito”
Do ponto de vista metodológico
Do ponto de vista metodológico, as adolescentes participantes valorizaram a dinâmica participativa, a horizontalidade e a representatividade presentes nas atividades. Isso permitiu a elas ter voz e aprender com as experiências e partilhas das mulheres negras adultas que coordenaram os projetos. A experimentação de uma metodologia participativa, fundada na horizontalidade e na confiança, constituiu marco fundamental da vivência dessas meninas e reverberou dentro e fora da escola, ao ampliar a compreensão sobre o que é ser mulher negra na sociedade brasileira.
“Percebemos que elas vão se empolgando, e tem mesmo essas coisas de se aproximar. A gente estabeleceu uma relação de amizade com elas. Boa parte das meninas já pegaram o meu contato e ficam me ligando. Eu busco argumentos para conversar com elas, por isso a gente tem que estudar e ouvir outras pessoas, para na hora de aconselhá-las, não deixá-las desanimadas e nem fazer com que elas desistam das coisas”).
Quanto aos afetos
“São meninas que chegam na escola com perfis desacreditados, sabe? Sem ver muita esperança no futuro… Nada muito longe do que a gente conviveu na nossa própria história. É por isso que levar mulheres negras para a escola é um negócio que funciona muito bem, porque aquelas meninas se veem na gente. Então… Nós somos muito parecidas fisicamente com elas, temos histórias muito parecidas com as delas. E em algum momento da nossa vida, a gente também foi desacreditada, sem muita esperança”-
Quanto aos afetos, para além do cotidiano escolar, o projeto compreende a importância da conexão entre mulheres negras adultas e adolescentes para proporcionar aprendizados significativos. Essa conexão é mediada pela experiência racial e de gênero comum que determina a realidade social de mulheres e meninas negras no Brasil. As mulheres adultas serviram como inspiração para as adolescentes ao mostrar a possibilidade de construir um futuro além dos limites das estruturas racistas e sexistas da sociedade brasileira. O processo de espelhamento positivo das experiências impactou tanto as meninas quanto as mulheres adultas, o que levou a uma revisitação de trajetórias e ressignificação de conquistas.
Quanto ao letramento racial e de gênero
Quanto ao letramento racial e de gênero, o projeto proporcionou um espaço de compartilhamento de vivências sociais e reflexões críticas. Meninas negras participantes relataram a falta de discussão dessas questões na escola. Por meio de metodologias participativas e conexões afetivas, as meninas aprofundaram suas habilidades de leitura crítica e compreensão das dinâmicas sociais na escola, família e comunidade. Por exemplo, elas desafiaram instâncias de racismo e sexismo, inclusive no currículo escolar, e exigiram maior discussão sobre a história da África, contribuições afro-brasileiras e ética e respeito nos relacionamentos, inclusive quanto à identidade de gênero e sexualidade. A alfabetização feminista e antirracista das meninas foi desenvolvida por meio de trocas de histórias de vida e interações com mulheres negras mais velhas, em muitos casos com reconhecimento e renome em suas áreas. Esse processo forneceu suporte contra percepções negativas de seus corpos e capacidades intelectuais.
“Como eu falei, da própria família falar que um branco, que um padrãozinho lá nasceu na família, eles vão falar que limpou, que é mais bonito por ter cabelo liso, ter a cor mais clara. Então pra mim, eu achava normal quando eu era pequena, que eu escutava muito isso, mas agora eu consigo defender a minha cor e o meu cabelo”
Sobre os sonhos
“Eu acho que deveria ter aulas mais interessantes, tipo aula de robótica, de música, de educação financeira, que realmente necessita…Aula assim que os alunos possam sentir vontade de querer, de fazer aquela aula, não ser obrigado como tem muitas aqui na escola”
Sobre os sonhos das meninas negras, a interação pedagógica no projeto influenciou a percepção das meninas negras do Meninas que vão além em relação às suas possibilidades de vida. A dimensão do sonho foi explorada para expandir seus horizontes e imaginar uma escola ideal, com recursos educacionais e aulas prazerosas e participativas. As meninas expressaram projetos profissionais variados e muitas não citaram a constituição de família como um objetivo. A participação no projeto ajudou a ampliar suas perspectivas e acreditar na realização dos seus sonhos, por meio do empoderamento e da visibilidade de mulheres negras em posições simbolicamente limitadas pela cultura racista e sexista.
Por fim, quanto à dimensão do Bem-Viver – Ubuntu
Por fim, quanto à dimensão do Bem-Viver – Ubuntu, os sonhos e preocupações expressos por adolescentes negras em suas projeções futuras vão além das noções socialmente compartilhadas de sucesso e nos ensinam a expandir nossa perspectiva sobre o que constitui uma vida plena. Elas projetam uma situação em que as realizações pessoais, profissionais e materiais se combinam para produzir uma vida feliz. Seus desejos e preocupações abordam temas como sexualidade, saúde psicológica, relacionamentos românticos equilibrados e superação do racismo e sexismo. Este conceito de uma boa vida não é individualista, mas compartilhado com pares, família, comunidade e grupo social. As aspirações futuras das meninas estão ligadas à melhoria da qualidade de vida para sua geração e além. Muitas também exigem que o conhecimento e as experiências adquiridas no projeto sejam expandidos para outras alunas e alunos, inclusive meninos. As projeções das meninas remetem à filosofia africana do ubuntu, que enfatiza a interconexão dos indivíduos em uma comunidade.
Por último, apesar de não ser o foco do projeto, a plataforma do S4P buscou provocar as coordenadoras e participantes a refletirem sobre a importância da língua inglesa na vida cotidiana das adolescentes. Foi possível verificar que a maioria das participantes têm pouca familiaridade com o idioma, apesar do contato a partir de músicas, filmes, jogos e das redes sociais. O aprendizado acumulado aponta para a urgente necessidade de qualificar o ensino de inglês nas redes públicas de ensino e para a importância de ampliar os horizontes culturais das estudantes através do acesso a uma segunda língua.
“Eu com 23 anos vou terminar a faculdade. Me formar em psicologia, quero ser psicóloga. Escolhi essa profissão porque acho que me encaixa. Vou estar bastante em escolas, olhar mais para as escolas, porque eu quero. Nossa geração está tendo um pouquinho mais de problemas, vamos dizer assim, com a ação dos psicólogos, ansiedade, depressão. E eu quero que na próxima geração tenha mais psicólogos para dar mais atenção para os adolescentes e para as crianças”
Considerações finais
O projeto impactou de forma significativa as pessoas participantes. Foi além da retórica da meritocracia individual e reconheceu a necessidade de oportunidades reais de desenvolvimento com foco na equidade racial. O investimento na mobilização de sonhos e na ampliação de projetos futuros deve ser acompanhado de um planejamento de longo prazo que garanta os recursos necessários para a concretização desses sonhos. Projetos focados no empoderamento de meninas negras devem ser capazes de superar os limites simbólicos e materiais impostos pelo racismo e sexismo para criar um futuro de possibilidades para as meninas negras.