Uma rede de nós

Rede é uma palavra que pode dizer muitas coisas. Por um momento, podemos pensar numa rede de descanso, de pesca ou até mesmo de conexão à internet. Tudo isso é rede e tem uma razão de ser. Para já ficar claro, vamos acordar aqui que rede é o emaranhado de coisas que ao se entrelaçar formam um todo. Sua tessitura é feita por pontos de encontro que se entrecruzam e se unem através de nós. Rede também pode ser feita por organizações e é sobre isso que vamos falar.

Há infinitos motivos que podem fazer as organizações se conectarem, como o fortalecimento institucional e a partilha de conhecimento. No entanto, dentre todas as razões para tecer laços, a maior delas é o sonho coletivo – algo que mobiliza corações e corpos e faz com que pessoas se encontrem, se fortaleçam e andem lado a lado para construir algo em conjunto. Somado a isso, a constelação de atores unidos em prol de um benefício comum possui um impacto muito maior do que a ação individual, ampliando a escalabilidade de suas ações e a sustentabilidade das organizações.

Como é cantado por aí:

sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só mas sonho que se sonha junto é realidade[1]

As tramas de uma rede organizacional não podem ser tecidas sozinhas. É preciso muitas mãos para trazer mudanças significativas para a sociedade e ultrapassar problemas sociais complexos. Este texto trata sobre as seis organizações que participaram do projeto Meninas que Vão Além, observando as costuras históricas que elas vêm alinhavando para que as questões de gênero e raça se tornem uma pauta transversal à construção do país.

Um fio entrelaça com outro

O trabalho conjunto não é algo novo para o movimento negro brasileiro. Ao olhar para trás, é possível lembrar as persistentes e incansáveis lutas por justiça social e equidade racial [2]. O Brasil possui autoras e autores negros com um valor inestimável para a construção do país que atravessaram a história resguardando saberes ancestrais, mantiveram vivas as manifestações culturais e não sucumbiram ao desamparo social.

Cada uma das seis organizações participantes construiu, ao longo do tempo, sua própria rede, tecendo com distintos atores o seu caminho e pautando temas relevantes de diferentes formas. Se formos falar de uma luta articulada que atravessa a história, podemos citar a Associação Quilombola de Conceição das Crioulas (AQCC). Se o tema for a representação da luta negra e o rompimento de fronteiras, convidamos o Geledés. Sobre a reivindicação para ocupar espaços acadêmicos e fazer ciência, há aqui a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e a Dandaras no Cerrado. Se a pauta for incidência política e conquista de direitos, não há como não falar do Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF) e de Elas no Poder.

No entanto, antes mesmo do projeto Meninas que Vão Além suscitar um encontro entre tais organizações, algumas delas já eram parte da rede uma da outra e há tempos teciam ações conjuntas. De forma breve, podemos dar dois exemplos: a luta pela educação quilombola realizada em conjunto pela AQCC, o CCLF e mais algumas organizações e a estreita relação e longo trabalho entre a ABPN e o Geledés para a propagação de investigações realizadas por pesquisadoras(es) negras(os). Essas conexões não causam espanto algum. Como já foi dito, a população negra sempre foi articulada, conectada e responsável pelas grandes mudanças do país – estruturais, econômicas e sociais.

De fio em fio, uma extensa rede vai sendo formada. Cada laço formado entre as organizações têm em si partilha e dedicação, elementos essenciais para a tessitura de sonhos. O propósito final é sempre encontrar respostas conjuntas para desafios coletivos. O mais interessante é que ao se conectarem, trazem consigo toda a bagagem da sua vivência e toda a rede que foi sendo construída ao longo do tempo. E assim, de fio em fio, de nó em nó, de nós em nós, expandem suas lutas.

Uma rede de nós

Embora muito caminho já tenha sido trilhado conjuntamente, há pouco tempo, as seis organizações se encontraram através da chamada Meninas que Vão Além e puderam partilhar suas experiências sobre os projetos que desenvolveram com meninas negras do 8º e 9º ano.  Ao interseccionarem esses dois fatores em suas pautas e no seu modelo de atuação, fazem aquilo que Angela Davis nos conta: “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Essa articulação se assentou na consciência de que os desafios sociais impostos por gênero e raça não são um problema individual e não há como superá-lo isoladamente.

Há algo de muito poderoso quando mulheres se encontram para cuidar do futuro de jovens meninas. Como nos conta Katiúsca Ribeiro (2020), a ancestralidade “possibilita se reconhecer e continuar um legado que nasce a todo tempo e se mantém vivo no pulsar de nossa existência materializada em diversas ações e oralituras”. Aqui, além de falar da rede de organizações que possuem um sonho em comum, podemos falar da rede que é costurada pelo tempo, feita por mulheres negras que abriram caminho para outras mulheres negras.

Rede é feita de nós. Nós que são laços, nós que são pessoas, nós que costuram o futuro. A vontade de mudar as estruturas de um sistema excludente rompe barreiras, atravessa o tempo, reúne pessoas, junta mulheres. Conquistar um espaço de equidade é dever de toda a sociedade, que precisa ser feito de mãos dadas, em rede.

Somos rede. Rede é feita de gente e gente é feita para brilhar!

Referências

[1] Raul Seixas, Prelúdio.

[2] NASCIMENTO, Abdias do. O quilombismo. 2. ed. Brasília: Fundação Palmares, 2002.